Fui assistir ao último show do cantor e compositor canadense Justin Bieber no estádio do Morumbi, no domingo, 9 de outubro, sem expectativas. Eu sei que comparecer a um espetáculo com essa candidez de espírito pode ser a pior das armadilhas para críticos, e ainda por cima céticos. Não raro, o sujeito cético não só é supreendido como costuma sofrer um surto de otimismo desenfreado. Não foi o que aconteceu. O que vi me deixou positivamente satisfeito, mas não completamente surpreso. Continuo a achar o novo pop infantojuvenil, capitaneado por Bieber, Jonas Brothers e Selena Gomez um fenômeno abaixo da minha compreensão: formulaico, repetitivo, muitas vezes insano na cópia de modelos ultrapassados. Entendo, porém, que as cançonetas desses astros mirins servem como uma incitação à música pop. A maior parte do público de 60 mil pessoas que compareceu ao Morumbi no domingo era formada por crianças e seus pais. E ambas as faixas devem ter aprendido alguma coisa.
Aqui, um parêntese autobiográfico. Ter ido ao show me serviu como um novo rito de passagem, da adolescência para a juventude... não para mim, mas para minha filha de 17 anos. Assim como compareci à derradeira feira de ciências escolar da Lorena, que está concluindo o colégio, também fui com ela ver o Justin Bieber, um dos ídolos de sua adolescência. Passei as duas últimas décadas comparecendo em eventos infantis e juvenis de toda sorte. A feira de ciências e o show de Bieber foram os últimos de uma fase da vida (agora, pelo jeito, só voltarei ao afã de acompanhar crianças como tio, ou avô). Minha sensação é, a um só tempo, de alívio e melancolia. Fico um pouco triste de ter de me despedir de um período tão bonito da vida de minhas filhas, quando os sonhos de futuro são puros e sinceros, talvez porque quem sonha ainda desconhece as agruras da vida real. A adolescência é o momento de aprender um instrumento, de sonhar com o impossível, de se revoltar, de vislumbrar todos os caminhos. Foi, de certa forma, o que senti no show de Bieber.
O menino que se movimentava no palco também vivia um rito de passagem. Não se tratava de uma farsa. É impressionante a ambivalência que ronda a carreira de Justin Bieber: ele tanto eletriza milhões de fãs como, ao mesmo tempo, sofre uma rejeição enorme de outros tantos milhões. Acho injusto. Meu ouvido não costuma me enganar, e não percebi passagens em playback, como alguns jornais andaram divulgando sobre Bieber. Ele não me pareceu fingir cantar com movimento dos lábios em nenhum momento. Vi, sim, um músico em formação, e com dotes legítimos suficientes para agradar ao público. Ele tocou violão, bateria e piano, dançou com uma troupe de street dancers e contracenou com uma banda de ótima qualidade. Foi um espetáculo profissional. Bieber andou pelo palco da mesma forma que se movimentaria em sua casa: com a naturalidade de quem cresceu na ribalta. Mas também foi um espetáculo onírico. Porque o músico parece viver aquela potencialidade infinita que é o interregno entre a infância e a idade adulta. Justin Bieber sonha no palco. Sonha diante de dezenas de milhares de pessoas a vertigem da adolescência.
Seu bom desempenho me fez pensar na figura do “Wunderkind”, no menino-prodígio capaz de arrebatar os adultos com uma perícia que eles sabem ser quase inalcançável (e por isso lhe devotam ternura), e os jovens, pela empatia e a identificação; pelo exemplo de persistência. O leitor me perdoe a impostura, mas Justin Bieber me fez evocar a imagem do austríaco Wolfgang Amadé Mozart (1756-1791) que, aos 5 anos, assombrava a imperatriz Maria Teresa da Áustria com suas improvisações ao cravo. Aos 9, compunha sua primeira ópera e suas primeiras sinfonias. Aos 17 anos, era uma personalidade da vida musical da Salzburgo natal. Também Bieber – aliás, o sobrenome Bieber tem origem austríaca, é o quase mesmo de um genial compositor de Salzubrgo, Heinrich Ignaz Franz Biber (1644-1704), somente nos últimos anos redescoberto – espantou seus pais quando, aos 5 anos, começou a batucar na cadeira da cozinha, aos 7 tocar violão – e, pouco depois, ser descoberto pelo cantor pop Usher, que passou a conduzir sua carreira. Justin Bieber projetou sua história nos telões, com sequências que comprovam seu gênio precoce e espontâneo. O público tem hoje uma sensação que, imagino, pode se parecer com a experimentada pelos que viram, no século XVIII, Mozart brilhar.
Não pretendo especular sobre a forma pela qual o talento de Mozart teria sido aceito neste século. Talvez ele fosse ignorado, ou massacrado. Quem sabe ninguém prestasse atenção em um menino abusado tocando clavicórdio. Mozart não teria lugar em um estádio. Tampouco vale a pena pensar se Justin Bieber seria levado a sério por um público requintado para a música como o europeu do século XVIII. Provavelmente, o jovem seria conduzido a um conservatório para reeducação auditiva. Seria ociosa fantasia.
O que me importa é pensar no efeito do espanto que ambos os meninos causaram na audiência de suas respectivas épocas. Caso trocassem de papel, um obviamente não teria sido o outro. Também devaneio sobre o fim da adolescência, e o que ela vai causar na alma de Justin Bieber. Para Mozart, ela foi traumática, porque significava que não podia mais dar espetáculos de pequenos truques; a partir de então, ele teria de provocar a admiração que só a grande arte desperta. Viveu seus últimos dias trabalhando febrilmente em grandes obras que foram ignoradas. Aos 35 anos, o divino Amadeus era enterrado em uma vala comum, esquecido pelo público que um dia o consagrou. Até ser endeusado 30 anos depois de sua morte.
Justin Bieber, portanto, deve enfrentar um dos momentos mais difíceis de sua carreira. Na música pop, o mesmo processo que enfrentaram astros como Michael Jackson e Stevie Wonder. Mas também sei que é uma superação quase inatingível, sobretudo quando se trata de “Wunderkinden”.Torço sinceramente para que Justin consiga atravessar as turbulências da juventude e da idade adulta – e conquistar seu lugar em definitivo na história da arte musical. Tomara que ele possa manter ou resgatar posteriormente o que já tem em potência.
Por tudo isso, lá no Morumbi, no meio do show, senti um imenso dó premonitório do menino seguro de si, fazendo as crianças dançar aos gritinhos. Talvez seu talento não sobreviva ao indivíduo. E o pior que pode acontecer a um artista é seu espírito morrer antes do corpo.
fonte: revista época